Reajuste automático faz servidores da Câmara ganharem mais que presidente
Diego Zanchetta e Rodrigo Burgarelli
Na Câmara Municipal de São Paulo, técnicos administrativos, garagistas, auxiliares e assistentes ganham até R$ 24 mil brutos por mês. O salário chega a ser mais de duas vezes maior que o do presidente da Casa, José Police Neto (PSD). Isso ocorre por uma série de aumentos automáticos e gratificações para funcionários concursados.
A lista de remunerações foi divulgada sábado no portal da Câmara (www.camara.sp.gov.br). É a primeira Casa Legislativa brasileira a adotar essa medida, antes mesmo da Câmara dos Deputados e do Senado. Na primeira versão, apenas servidores efetivos que ocupam cargos de comissão e os que trabalham ligados à Mesa Diretora tiveram vencimentos divulgados - são 713 dos mais de 2 mil. Ao menos 326 deles recebem mais que o presidente e os outros 54 vereadores. O salário médio é de R$ 8,9 mil por mês, sem contar gratificações pagas a guardas civis e policiais militares da Casa. Com vencimento mensal bruto de R$ 9.288,05, Police Neto recebe menos até que assessores de imprensa e um dos manobristas da garagem, cujo salário é de R$ 11.431,45.
Grande parte desses salários é explicada pelos reajustes automáticos. Com eles, um técnico administrativo do setor de protocolo, cargo que não exige curso superior e cujo salário inicial é de cerca de R$ 3,5 mil, pode receber mais de R$ 20 mil ao longo de 30 anos de carreira. Além disso, funcionários mais antigos já incorporaram aos vencimentos várias gratificações que, após reformas recentes no funcionalismo, pararam de ser pagas aos concursados mais recentes.
O salário só não ultrapassa a barreira dos R$ 30 mil porque o Legislativo passou a aplicar o teto constitucional de R$ 24,1 mil (referente ao salário do prefeito de São Paulo) há cerca de dois meses. Antes disso, chegava-se a ganhar R$ 46 mil mensais na Casa.
Outras gratificações não vinculadas à produtividade, porém, continuam em vigor. A sexta-parte, por exemplo, dá bônus de 1/6 do salário a servidor com mais de 20 anos de serviço. Há ainda adicional por tempo de serviço e gratificação por exercer funções de coordenação e chefia e participar de sessões plenárias, comissões regimentais ou licitações.
Com salário de R$ 23 mil, garagista da Câmara está há 6 anos fora da garagem
Um garagista da Câmara Municipal de São Paulo não trabalha na garagem há pelo menos seis anos. Alexandre Camargo Pereira, de 37 anos, é, na verdade, assessor parlamentar do vereador Juscelino Gadelha (PSB). Segundo o site da Casa, seu salário bruto é de R$ 23.206,96 - mais que o dobro do que ganha o presidente José Police Neto (R$ 9,3 mil).
O salário dos garagistas, maior também que o dos 55 vereadores, de R$ 7,2 mil mensais, chamou atenção até do prefeito Gilberto Kassab (PSD). Um dia após a divulgação dos salários do Legislativo - a Câmara de São Paulo foi o primeiro órgão desse poder a abrir os vencimentos dos seus funcionários -, o prefeito brincou e disse que gostaria de ser garagista da Casa. Até a revista inglesa The Economist falou sobre os holerites dos servidores paulistanos, a quem apelidou de "gatos gordos".
Pereira nunca prestou concurso para trabalhar no Legislativo. Foi nomeado assessor parlamentar de Gadelha, que vai trabalhar com carro próprio e não usa motorista da Casa, em janeiro de 2005. Filho de Joaquim Nabuco Pereira, que recebeu em maio - em valores brutos - R$ 17 mil para coordenar os motoristas, ele hoje é um "faz-tudo" no gabinete de Gadelha.
Ajuda tanto a descarregar caixas que chegam ao gabinete quanto na elaboração de ofícios que são enviados a secretarias municipais. "Quem trabalha na garagem é meu pai, o supervisor dos motoristas. Eu já fui motorista do Zé Eduardo (José Eduardo Martins Cardoso, atual ministro da Justiça, vereador até 2003), já fiz esse trabalho, mas agora estou no gabinete do Juscelino", confirmou Pereira nesta terça-feira, 26, ao Estado.
Segundo o vereador, Pereira foi colocado "em função errada" e seu salário real é de cerca de R$ 7 mil - ele teria recebido o salário errado de R$ 23 mil por "dois ou três meses". Gadelha diz ainda que o valor recebido a mais será devolvido aos cofres públicos, "mesmo que ele tenha de tirar a diferença "do próprio bolso".
Nesta terça, o holerite de Pereira, publicado no site da Câmara, ainda mostrava os vencimentos de maio, com salário bruto que chega a R$ 23 mil. Procurado, ele afirmou que a reportagem deveria pedir mais explicações ao chefe de gabinete de Gadelha, Edson Dominguez. "O que sei é que foi um erro do vereador. Ele não trabalha na garagem, o Juscelino nem usa motorista", admitiu Dominguez. A presidência da Casa informou que "no próximo mês haverá a atualização de dados, com o novo salário".
Falso garagista da Câmara usa empresa de papel para dar dinheiro a vereador
O falso garagista que recebe R$ 23 mil mensais na Câmara Municipal assinou contrato com o vereador Juscelino Gadelha (PSB) para repassar dinheiro ao parlamentar por uma empresa - a Náutica Turismo Flutuante Ltda - que não tem site na internet nem telefone na lista. No endereço em que ela está registrada na Receita Federal, em Ubatuba, no litoral norte, há só uma residência.
Alexandre Camargo Pereira aparece no site da Câmara como funcionário do setor de Garagem e Frota, apesar de trabalhar no gabinete do vereador desde 2005. Na terça-feira, Juscelino admitiu que ele não trabalha como garagista e é, na verdade, um "faz-tudo" em seu gabinete - o alto salário seria um "erro". A reportagem obteve cópia do contrato firmado entre Gadelha, Pereira e seu sócio - Marcio Alves - em uma empresa de turismo náutico. O documento diz que a Náutica alugou do vereador um toboágua para 150 passageiros. Em troca, repassaria 80% de seu lucro a Gadelha.
O contrato foi assinado em 7 de dezembro de 2009, quando Pereira já trabalhava para Gadelha na Câmara Municipal. Ele havia sido nomeado assistente parlamentar do vereador - cargo em comissão que não exige concurso público - em janeiro de 2005, exatamente quatro dias após Gadelha tomar posse no seu primeiro mandato. Ele continuou na Casa quando o vereador foi reeleito, em 2009. Antes disso, já prestou serviço para outros vereadores - Camargo está na Casa desde 1989, sempre em cargos comissionados.
A reportagem foi ao endereço no qual a empresa está registrada em Ubatuba, mas não conseguiu entrar em contato com nenhum responsável. O local é uma residência, com portão de ferro e cachorro. Ninguém atendeu aos toques da campainha e às batidas na porta. No escritório ao lado, uma funcionária confirmou que o local é uma residência e nunca ouviu falar de agência de turismo náutico ali.
O Estado também pede ao vereador desde quarta-feira explicações sobre o pagamento que recebeu de seu subordinado. Naquele dia, ele afirmou que não poderia responder por causa do jogo do Corinthians na Libertadores e prometeu dar as explicações na quinta-feira. Mas quinta-feira seu celular estava desligado e ele não retornou as ligações. Na sexta-feira, a assessoria do vereador disse que ele não conseguiu cópia do documento com seu contador e se explicaria na segunda-feira. Pelo celular, prometeu retornar mais tarde, o que não ocorreu. Pereira não foi encontrado pela reportagem.
Segundo o gabinete do vereador, Pereira já trabalhou para cinco vereadores, em diferentes legislaturas. Seu salário de R$ 23 mil é quase todo composto pela gratificação parlamentar por trabalhar como assessor no gabinete de Gadelha, quantia determinada pelo próprio vereador: R$ 20 mil. O valor é retirado de um total de R$ 106 mil que cada parlamentar tem para dividir entre até 18 assessores legislativos. Segundo Gadelha, o salário de Pereira deveria ser de apenas R$ 7 mil. O parlamentar reconhecer pagamento de salário indevido por dois meses (abril e maio) e prometeu devolver a diferença.
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